24 abril 2010

QUETZALCÓATL: HOMEM, SANTO OU DIVINDADE?

Quetzalcoatl. Pintura de Dan Staten


A cultura asteca, sua história, sua sociedade, sua produção artística estão intimamente ligadas às suas crenças religiosas. Essa religião é, principalmente, animista e dualista, na qual magia e cosmogonia fundem-se em um único elemento. Segundo Soustelle, os Astecas são os indígenas mais religiosos do México. Sua religião simples e dualista, quase que totalmente astral – ao menos em sua origem – foi enriquecendo-se ao longo do tempo através dos contatos com os povos sedentários do Centro. Conforme seu império foi se expandindo foi se incorporando novos elementos religiosos. Tanto que por volta do século XVI, sua religião era um denso conjunto de crenças e cultos de origens distintas.

A característica marcante da escatologia asteca é o seu caráter fatalista, onde não há vestígios de esperança. O caráter dualista domina o mundo espiritual asteca, estando presente nas forças da natureza e no panteão. Os deuses foram criados pela união dos princípios masculino e feminino: “os membros do casal supremo, Senhor e Senhora da Dualidade”[1]. Segundo Lehmann, a religião exercia um domínio total na vida dos astecas e absorvia grande parte de sua força. Os deuses comandavam tanto o Estado como o indivíduo. Todos os acontecimentos da vida, o dia do nascimento e o da morte, o bom ou mau destino, tudo fazia parte dos desígnios divinos. O princípio duplo inexoravelmente se manifesta também na formação dos deuses, e na formação da humanidade: “se llega a concebir que todo cuanto existe obedece a la acción de dos principios antagonicos que lucha eternamente (dualismo). Sólo así se explica la lucha entre el mal y el bien". [2]

A maior dificuldade em se estudar a religião asteca e seu panteão (sua mitologia) está no caráter mágico dela, que se deve à visão dualista do mundo. Os astecas, ao assimilar outros povos, assimilavam também suas divindades e seus cultos. Todavia essa incorporação de novas divindades era organizada pela classe sacerdotal que buscava reduzir a quantidade de divindades considerando cada deus como multifacetado.

Essa multiplicidade de deuses de diversas origens e diferentes atributos é visível quando se tenta ordena-los. Cada divindade asteca podia sofrer diversas manifestações e apresentar-se com diferentes atribuições. É o exemplo de Quetzalcóatl, um dos deuses mais importantes. Sua origem é tolteca, porém há manifestações suas por toda a América Latina. Para os astecas ele é o deus do vento, da vida, da manhã, do planeta Vênus, dos gêmeos, dos monstros, patrono das artes e da sabedoria, criador e pai dos homens. Seus nomes são: Quetzalcóatl, Ehécatl, Tlahuizcalpantecuhtli, Ce Ácatl, Xólotl, entre outros.


O nome Quetzalcóatl significa literalmente “serpente de plumas”, porém quetzal é também o símbolo de “coisa preciosa”, e cóatl significa gêmeo. Portanto o nome Quetzal-cóatl pode ser traduzido como “gêmeo precioso”, indicando sua atribuição de estrela matutina e vespertina. Esta identificação com o planeta Vênus deu origem a diversos mitos e explica quase todas as lendas de Quetzalcóatl.

Dentre os mitos envolvendo esse deus o mais importante é o da criação do homem. O mundo para os astecas, foi criado varias vezes. Isso porque a criação era seguida pela destruição por cataclismos. A última vez que o homem foi criado o deus Quetzalcóatl foi ao mundo dos mortos recolher os ossos dos homens, verteu sobre eles seu próprio sangue e deu vida novamente aos homens. Essa lenda explica a importância dos rituais de sacrifício humano e o papel fundamental que o sangue exerce nessa religião. Os homens, para manter-se vivos precisam manter vivos os deuses, alimentando-os com sangue humano. Apesar dessa lenda que justifica o sacrifício humano estar ligada diretamente à Quetzalcóatl consta que ele, durante seu governo sobre o mundo, proibiu essa prática.

Quetzalcóatl foi, sem dúvida, o mito mais difundido por toda a Meso-América. Com caráter multiforme, porém sempre benigno. Esse aspecto valente, bom, de herói integrador seria muito bem aproveitado pelos evangelistas espanhóis no momento de “garimpar” almas para a religião cristã. Do mito de Quetzalcóatl há varias versões, entretanto nenhuma delas sobreviveu à conquista espanhola de 1519 sob a forma escrita. Os pontos em comum na grande maioria das versões é o fato de que Quetzalcóatl, após criar os homens, desceu das efemérides divinas e encarnou como homem, veio para ensinar à humanidade todas as artes, a sabedoria e a bondade.

O homem Quetzalcóatl foi um rei tolteca muito justo, sacerdote, astrônomo, foi quem adaptou o calendário maia em algumas partes e estruturou o calendário tolteca, assimilado mais tarde pelos astecas. Seu reinado marca a assimilação do povo maia pelos toltecas. Teria morrido em 5 de abril de 1208, exilado em algumas versões, traído e morto em outras. Independente da versão de sua morte e das condições que esta ocorreu o certo é que ao deixar o trono tolteca Quetzalcóatl afirmou que retornaria. Assim ele se converteu no centro de uma cosmologia religiosa. Esta história mitológica chega, na forma de tradição oral, aos ouvidos dos conquistadores espanhóis que rapidamente vão interpretá-la e aproveitar-se dela.


Quetzalcoatl tatoo design. Excerpts from the Tattoo Encyclopedia: A Guide to Choosing Your Tattoo

by Terisa Green and Greg James


Um dos escritores que percebeu o caráter “messiânico” da lenda de Quetzalcóatl foi Bernardino de Sahagún. No primeiro livro de sua Historia general de las cosas de Nueva España ele tenta recuperar a figura de Quetzalcóatl assimilando-a a Jesus Cristo. A intenção de Sahagún foi explicar a outros missionários a concepção de mundo dos mexicas, para com isso poder afirmar o cristianismo e melhor evangelizar. Notória é a visão tendenciosa que Sahagún passa em sua obra, nesta assimilação da figura do deus tolteca existe um interesse ideológico deformador. Por outro lado, a aristocracia mexica pós-conquista também possuía o peremptório desejo de reabilitar Quetzalcóatl, como uma figura quase cristã, pois isso legitimava seu poder e a conseqüente manutenção deste.

Quetzalcoatl, desenho de Adam Fu Reed.


Sahagún não define o retorno de Quetzalcóatl como sendo uma profecia da chegada dos espanhóis, embora perpasse a idéia de que os espanhóis são companheiros do deus. Outros escritores vão além, é o exemplo de Las Casas que sugere que os cristãos são filhos e irmãos de Quetzalcóatl. Desta maneira tentou-se converter Quetzalcóatl em um apóstolo de Cristo para poder cristianizar mais facilmente. Como Paz salienta: a mentalidade européia viu-se confrontada pelas impenetráveis civilizações da América.

A partir de meados do século XVI foram feitas diversas tentativas para suprimir as diferenças entre mexicas e espanhóis. Alguns alegavam serem os antigos mexicanos descendentes de uma tribo perdida de Israel; outros os consideravam como sendo de origem fenícia ou cartaginesa; outros ainda estabeleciam relações entre certos ritos dos astecas semelhantes a cerimônias cristãs, imaginando que aqueles fossem um eco distorcido da pregação do evangelista São Tomé. Essa corrente defendia que o evangelista teria vindo para as Américas e adotado o nome de Quetzalcóatl [3].

A crença em uma evangelização realizada muito antes da chagada dos espanhóis no Novo Mundo, realizada por São Tomé, resulta da leitura de São Paulo que afirma que a palavra de Cristo foi levada até os confins da terra, pelos apóstolos. Atualmente sabemos da existência de correntes marítimas ligando a costa oeste da África às laterais leste da América, todavia o pensamento quinhentista desconhecia esse fato. Lafaye informa que a descoberta de textos bíblicos e de fatos novos permeados de crenças antigas seriam argumento suficiente para corroborar a idéia de que Quetzalcóatl foi o apóstolo São Tomé.

"Aztec and Maya Myths." Karl Taube. University of Texas Press. ©1993


Mesmo entre os índios houve confusão a respeito da similitude dos espanhóis com o mito do regresso de Quetzalcóatl. A lenda rezava que Quetzalcóatl regressaria de seu exílio e novamente instauraria a idade de ouro. Esta profecia possuía um caráter cronológico. O deus deveria retornar em um ano 1 acatl, coincidentemente os espanhóis aportaram no México em um ano 1 acatl, o ano de 1519. O próprio Hernán Cortéz foi confundido com o deus. Porém essa crença não logrou. O rei Montezuma mandou levar até Cortés os ornamentos sagrados de Quetzalcóatl com a finalidade de verificar a identidade do deus, o que não ocorreu.

Mesmo que ainda restassem dúvidas a respeito da identificação de Cortés com o deus, o massacre efetivado pelas tropas espanholas em Cholula, cidade sagrada de Quetzalcóatl, bastaria para dissipar quaisquer equívocos. Lafaye demonstra que a profecia de Quetzalcóatl “aparece como un caso particular, para México, de una crencia común a la mayoría de las poblaciones indígenas, según la cual unos superhombres vendrían del este para dominarlos” [4] é certo que os espanhóis foram posteriormente considerados filhos do Sol, companheiros de Quetzalcóatl, este foi um estratagema político para facilitar a penetração do continente, mas serviu também como fonte de inspiração para os missionários criarem uma brecha para a evangelização.

Quetzalcoatl, escultura asteca.


Se São Tomé esteve na Meso-América pregando a “boa-nova”, ou se algum outro europeu esteve em terras mexicas em alguma era pré-colombiana, são conjecturas que até o momento não se podem provar. O fato é que os povos do México possuíam uma religião bastante complexa e dentre seu panteão destaca-se a importante figura de Quetzalcóatl. Esse deus foi criador da humanidade, professor dos homens, foi deus e rei encarnado. Sua morte causou tristeza em seu povo, a ponto de se construir uma profecia de seu retorno. Como todo herói “messiânico”, indícios de sua volta não faltaram. Como se não bastasse a superstição do povo, os invasores chegam sob a auspiciosa data profética.

Os evangelizadores espanhóis tinham consciência de seu papel de divulgadores da “verdade” cristã e lançaram mão dos meios que lhes foram apresentados. Legitimar sua presença em solo mexicano através de um mito cosmogônico foi um meio para alcançar a mentalidade desse povo a ser conquistado e catequizado.


[1] SOUSTELLE, Jacques. A Civilização Asteca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p.68.

[2] CASO, Alfonso. El pueblo del Sol. México: Fondo de Cultura Economica, 1962, p.14.

[3] Cf. PAZ, Octavio. Essays on Mexican Art. New York: Harcourt Brace & Company, 1993.

[4] LAFAYE, Jacques. Quetzalcoatl y Guadalupe : la formacion de la conciencia nacional en Mexico. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1985, p.227.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


CASO, Alfonso. El pueblo del Sol. México: Fondo de Cultura Economica, 1962.

COLLIER, John. Los Indios de Las Americas. México: Fondo de Cultura Economica, 1960.

LAFAYE, Jacques. Quetzalcoatl y Guadalupe : la formacion de la conciencia nacional en Mexico. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1985.

LEHMANN, Henri. Las Culturas Precolombinas. Buenos Aires: EUDEBA, 1960.

PAZ, Octavio. Essays on Mexican Art. New York: Harcourt Brace & Company, 1993.

SAHAGÚN, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España. 4. ed. México: Porrúa, 1979.

SOUSTELLE, Jacques. A Civilização Asteca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

SOUSTELLE, Jacques. La vida cotidiana de los aztecas en vísperas de la conquista. México: Fondo de Cultura Economica, 1956.


13 comentários:

  1. Retribuo-lhe, embora atrasado, a visita a meu blog,

    http://famadoria.blogspot.com

    e seu comentário amigo lá deixado.

    Francisco Antonio Doria

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  2. Adoro cultura/arte/religião/qualquer coisa meso-americana...hehehe
    Achei esse Post formidável bastante interessante e informativo.
    abraço

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  3. Ola Tathyana, muito bancana o seu post sobre Quetzalcóatl. Estive recentemente no México e estou bastante interessado em aprender mais sobre a cultura mexicana e seus deuses. Tenho um Blog que se chama: "LATINOAMERICANOS, un espacio para compartir pasiones por América Latina", com amigos dos países vizinhos. E gostaria de convidar você para visitar-nos. Abraço, Marcelo.

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  4. Oi Querida!
    Comecei a pesquisar sobre Quetzalcoalt e achei sua pesquisa muito enriquecedora. Obrigada.
    Gostaria de perguntar a vc se vc sabe dizer algo sobre o Deus Asteca HURAKAN?
    Desconfio que Quetzalcoalt e Hurakan são os mesmos.
    Se vc souber algo a respeito por favor me escreva.
    radha.vitoria@gmail.com

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  5. Olá,Tathyana!

    Adorei o texto e o blog.
    Peguei o link deste post coloquei em meu blog.

    Abraços.

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  6. Gostaria de tirar uma duvida.
    A historia do deus Quetzalcóatl não é mais antinga do que o cristianismo?

    um grande Abraço!

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  7. Olá Tathiana.
    Muito legal e replata de fatos muito interessantes que você recolheu e compilou.
    Gostaria apenas de chamar a sua atenção para coinscidência de Quetzalcoatl ter características tão parecidas com Jesus Cristo.
    Naturalmente, sua posição de cientista não permite enveredar pelas "mitologias" religiosas (seria uma ofensa à comunidade acadêmica - diriam os mais vaidosos), mas, pelo seu pensamento neste texto e pela sua sinceridade no assunto, não valeria a pena dar uma espiadinha? Certamente terá respostas que vão preencher as lacunas que você mesmo percebe existirem.
    Abraço

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  8. Vc deveria se aprofundar nessas semelhanças entre quetzalcoatl e jesus cristo.Vc já observou a religião mormom? Lá vemos a visita de jesus as américas, o livro de mormon possui fragmentos dignos de dar uma espiadinha para serem analisadas.

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  9. Óla Tathiana, estou tendo que fazer um trabalho da facu, sobre: os dogmas ou preceitos dessa divindade,gostaria de saber se vc tem algo matérial, se tiver e se possivél me mandar, ficarei muito grata.
    e-mail:marilinha3.0@hotmail.com
    Desde já agradeço
    Um abraço boa tarde.

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  10. Quem gostar e tiver interesse pode acessar o site http://www.toltecayotl.org/tolteca/

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  11. Realmente não era minha intenção fazer um paralelo com qualquer religião.
    Agradeço a sugestão, mas adimito saber quase nada a respeito da religião dos mórmons.
    Teria que pesquisar melhor para saber se historicamente existe alguma relação entre o mito de Quetzalcóatl e a figura de Jesus.
    O que posso ressaltar desde já é que os astecas não conheciam a religião cristã até a chegada dos espanhóis e sua religiosidade é bem anterior a esse fato.

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  12. O mormonismo declara que Quetzalcoatl foi Jesus Cristo. Inclusive atestam que O Livro de Mórmon relata essa aparição. Achei muito interessante esse video do youtube:
    http://www.youtube.com/watch?v=GSVUysvW0xo

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  13. Parabéns pelo blog.Os ufólogos podem achar que Quetzalcoati foi um daqueles 200 anjos que desceram do céu segundo Enoque. Eu acho que ele foi um mago europeu que visitou a América antes dos Espanhóis.Talvez da Escandinávia.

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